A Retórica Nua tem como principal função expor alguns de meus pensamentos, idéias e textos nem um pouco acadêmicos. O objetivo é a diversão e a liberdade"nua e crua" de se escrever qualquer coisa. Sejam Bem vindos e Boa Leitura!

terça-feira, 8 de abril de 2014

"Eu sei, mas não devia" de Marina Colasanti recitado por Antônio Abujamra no Provocações:


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. 

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

segunda-feira, 31 de março de 2014

...mas que cheiro de naftalina!





         Caros cidadãos, eu quero agradecê-los para a maior invenção de 2014: a máquina do tempo.  Nesse ano devemos, literalmente, rasgar os livros historiográficos sobre o século XX e (re)vivenciarmos uma experiência antropológica sobre todas as ideologias do século passado. Sabe, sem tirar nem pôr... Mas vale até trocar de lado. Ou não?!?
      É cidadão...Nicolas Kristof, jornalista ganhador de dois prêmios Pulitzer escreveu: “o mundo precisa urgentemente de pensadores críticos (e bem informados)”! Sim, raciocínio crítico e informação estão em falta. Atualmente, ou até mesmo no século passado, o mundo reincorporou o zoroastrismo e voltamos ao eterno debate do bem contra o mal. Mas, nosso antagonismo está a cheira naftalina. A antiga naftalina que nossos pais e avos depositaram no armário durante a Guerra-Fria foi reaberto, simplesmente. É! Abrimos os velhos baús e voltamos a defender os “ismos” do passado. “Ah... Mas é passado recente!”... Pior ainda: o que aprendemos com todo o século XX? A lição não seria a desromantização dos “ismos” como o fascismo, o nazismo e o comunismo? Ambos foram ditaduras e pior: nenhum “ismo” acabou com a desigualdade e a corrupção.
       Não estou acusando as gerações passadas. Acusá-las seria desrespeitar todos os desejos e anseios de mudanças, medos e frustrações que vivenciaram antes e durante a Guerra Fria. Estou acusando a minha, a nossa geração: a geração pós-guerra fria. Estou nos acusando de falta de presentismo. Nossa geração apresenta dois fatos importantes para problematizar o século passado: uma perspectiva historicista e experimentalista. Nós sabemos de todos os processos de causas e conseqüências dos ‘ismos’ e mesmo assim somos reacionários, carentes de idéias e ideologias próprias de nosso tempo. Estamos, literalmente, nadando na naftalina.
       Mais uma vez cidadão, chamá-lo de reacionário não é ofensa, é fato. Além do mais, é um fato ingênuo. Agora vão dizer que acreditar em um sistema político-econômico, ou governo militar é a solução para TODOS os problemas... Sinceramente é muita ingenuidade! É uma ingenuidade amalgamada ao mito do sebastianismo (desde quando general presidente é sinônimo de honestidade administrativa?). Pronto agora esqueçamos a naftalina e chamemos a galera da arqueologia: “Por favor, tragam o carbono-14!”     
      Pensarmos e endeusarmos um salvador da pátria, ou um modelo de governo “perfeito” é fugir de nossas responsabilidades reflexivas e democráticas. É muito fácil copiar e colarmos ideologias sem problematizá-las. É inocência política e social termos apenas uma visão ideológica e uma formula certa contra a corrupção.  A ideologia deve ser desprendida totalmente de uma referencia totêmica e a História já provou, muitas vezes, que ideologias dualistas (bom VS. ruim) causam uma patologia social grave: a falta de alteridade. (Jango e Celso Furtado que o digam!)  
       Imaginem se presenteássemos com nossa máquina do tempo os milhões de alemães e italianos que vivenciaram a experiência nazista e fascista. O mesmo falo aos milhões de pessoas que vivenciaram uma ditadura comunista. Será que eles fariam, exatamente, o mesmo? Será que nossa geração precisa, mesmo, (re)aprender as conseqüências do pior jeito? Hannah Arendt, uma filósofa alemã gritou a todos os cantos do século XX: "O mais radical revolucionário tornar-se-á um conservador no dia seguinte à revolução". Pena que não foi ouvida!
         Sinceramente, se é para sermos reacionários, pelo menos, sejamos menos "ovelhinhas" e mais humanistas críticos e democráticos.
             
            "A essência dos Direitos Humanos é o direito a ter direitos"